terça-feira, 10 de setembro de 2013

O que dizer dos salmos imprecatórios? (por W. Gary Crampton)

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O Livro dos Salmos foi apropriadamente descrito por Garry Brantley como um infalível e inerrante “conjunto de canções e orações que cobre uma variedade de temas”[1]. Alguns dos salmos são de adoração: individual (30, 34) e coletiva (66,75); alguns são de peregrinação (120-134); alguns são messiânicos (2, 45, 110); alguns celebram o reinado universal de Deus (47, 93, 99); alguns são orações: de indivíduos (3, 4, 38) e da comunidade (44, 79); alguns são penitenciais (32, 51) e alguns são de imprecação (69, 109). O assunto deste estudo são os salmos imprecatórios.

Salmos imprecatórios, citando Gleason Archer, são aqueles que “contêm apelos a Deus para que derrame sua ira sobre os inimigos do salmista”[2]. Ou, nas palavras de J. A. Motyer, eles são “salmos que contêm passagens que buscam o prejuízo de outrem”[3]. À primeira vista, essas “orações de destruição” podem parecer estar em desacordo com a responsabilidade cristã de amar os inimigos (Mt 5.44). Reflexão adicional, todavia, revelará que esse não é o caso.

Quanto ao número de salmos imprecatórios, há diferentes opiniões. Alguns estudiosos vêm somente três, outros, até vinte. A razão para essa diferença é que há um número de salmos que contém elementos de maledicência. Para este escritor, parece que há, pelo menos, dez desses salmos: 7, 35, 55, 58, 69, 79, 83, 109, 137 e 139.

Diversas visões errôneas


Há várias supostas soluções para os salmos imprecatórios que são inadequadas[4]:

1. A visão liberal ou moralista é que os salmos imprecatórios são meramente as palavras não inspiradas dos autores. Nesse caso, não se deve assumir a vingança de Deus; em vez disso, é a vingança dos escritores falíveis.

Tal teoria, é claro, é inaceitável para aqueles que se firmam no ensinamento bíblico da inspiração divina. “Toda a Escritura”, tanto os escritos do Antigo Testamento quanto os do novo, diz Paulo, “é inspirada por Deus” (2Tm 3.16-17). Assim também, em 2 Samuel 23.1-2, lemos que “o mavioso salmista de Israel” falou pelo “Espírito do SENHOR [...] e a sua palavra está na minha língua”. Além disso, os salmos de imprecação são citados no Novo Testamento por Cristo e outros igualmente inspirados (Jo 2.17; 15.25; At 1.20; Rm 11.9-10; 15.3).

2. A visão dispensacionalista declara que esses salmos devem ser entendidos à luz dos conceitos éticos inferiores do Antigo Testamento, que foi uma dispensação da lei. Esse é agora um sistema ético antiquado. Portanto, os salmos em que encontramos a invocação de justiça, calamidade ou maldição não têm lugar na era de graça do Novo Testamento.

Há vários problemas com essa teoria. Primeiro, o sistema de ética do Antigo Testamento não é antiquado. Nas palavras da Confissão de Fé de Westminster (19.5), a lei moral do Antigo Pacto “obriga para sempre a todos a prestar-lhe obediência, tanto as pessoas justificadas como as outras, e isto não somente quanto à matéria nela contida, mas também pelo respeito à autoridade de Deus, o Criador, que a deu. Cristo, no Evangelho, não desfaz de modo algum esta obrigação, antes a confirma”.

Segundo, simplesmente transferir as orações de imprecação para o Antigo Testamento não resolverá o problema. O Novo Testamento também contém tais orações. Em Mateus 23, por exemplo, Jesus pronuncia “ais” imprecatórios para os escribas e fariseus. Em Gálatas 1.8-9 e 5.12, lemos Paulo “anatematizando” quem quer que pregasse “outro evangelho” além do evangelho apostólico. Em Apocalipse 6.10, os santos martirizados clamam: “Até quando, ó Soberano Senhor, santo e verdadeiro, não julgas, nem vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra?” E, em Apocalipse 8, nos é dito que são as orações imprecatórias dos santos que trazem o julgamento de Deus contra seus inimigos.

3. Alguns estudiosos, tais como Charles Spurgeon, contendem que esses salmos são de natureza mais profética do que imprecatória[5]. Nessa visão, o salmista não está pedindo a ira de Deus, está meramente a prevendo.

Em resposta a essa contenção, primeiro deve ser notado que verdadeiramente são encontradas nos salmos declarações proféticas a respeito da vingança de Deus. Mas isso não explica a forma imperativa verbal que aparece em vários dos salmos imprecatórios (por exemplo, 55.9; 109.6). Outro problema é que, em algumas das imprecações, como as encontradas em Salmos 137.8-9, a terceira pessoa está sendo usada de tal forma “que o salmista obviamente está expressando satisfação pessoal pelo julgamento de malfeitores e não revelando profeticamente a vingança divina pendente”[6].

4. Uma quarta solução insatisfatória para esses salmos é a afirmação de que devem ser entendidos figurativamente. Isto é, as imprecações não se dirigem aos seres humanos, mas aos inimigos espirituais, tais como tendências pecaminosas, tentações e forças demoníacas. Mas isso é pura fantasia. Não há nada no texto dos salmos que sugira essa solução fantástica. Como disse Bushell, os que “vêem as pessoas condenadas como meras personificações do mal são culpados de exegese fantasiosa e ilegítima”[7].

5. Finalmente, há a teoria de que as maldições não são do salmista, mas de seus inimigos. Essa suposta solução necessita do uso implícito do gerúndio “dizendo” antes das imprecações. Por exemplo, em Salmos 109.6-20, temos a oração imprecatória de Davi. Se adicionamos “dizendo” ao verso 5, então temos as imprecações atribuídas aos inimigos de Davi. No verso 5, leríamos: “Pagaram-me [os inimigos] o bem com o mal; o amor, com ódio, dizendo [...]“. Recorre-se aqui a Salmos 2.2, onde a palavra “dizendo” é implícita pelo contexto. Como apontou Brantley, no entanto, essa solução “é forçada”. Embora “o contexto do salmo 2 indique que o verso três registra os sentimentos daqueles que ‘conspiram’ contra o SENHOR e seu Messias”, o salmo 109 não indica tal coisa. “Além disso, essa solução não explica outras imprecações, nas quais é indicada a pluralidade de inimigos (compare Sl 35.4-7; 58.3-8; 83.11-17)”[8].

6. Adicionalmente, há um “abuso” atual dos salmos imprecatórios, quando igrejas fazem orações maledicentes contra aqueles que deixam essas igrejas específicas ou contra os professores da igreja que pedem auxílio-desemprego. Orar de tal maneira é prestar um desserviço ao ensinamento da Escritura sobre o assunto[9]. Grande cuidado também deve ser aqui tomado pela igreja para não reagir aos terroristas islâmicos declarando “guerra santa” contra aqueles que atacaram os Estados Unidos da América. Uma coisa é atacar a América; outra, completamente diferente, é atacar a igreja de Cristo. Por isso Davi pode, com propriedade, orar contra os inimigos da igreja do Antigo Testamento: “Levanta-te, SENHOR, defronta-os, arrasa-os; livra do ímpio a minha alma com a tua espada, com a tua mão, SENHOR, dos homens mundanos, cujo quinhão é desta vida e cujo ventre tu enches dos teus tesouros; os quais se fartam de filhos e o que lhes sobra deixam aos seus pequeninos” (Sl 17.13-14).


A visão bíblica


Uma visão correta dos salmos imprecatórios reconhece os seguintes princípios bíblicos:

1. Primeiro, como diz o Breve Catecismo de Westminster, na primeira questão, “O fim principal do homem é glorificar a Deus, e gozá-lo para sempre”. Comentando as seções imprecatórias do salmo 69, João Calvino escreve: “Foi um zelo santo pela glória divina que o impeliu a intimar o perverso ao assento do julgamento de Deus”[10]. Sendo esse o caso, os salmistas imprecatórios devem ser vistos como homens que expressaram um ardente desejo de que Deus fosse glorificado. Eles buscavam sinceramente a vindicação do nome de Deus (Sl 9.19-20; 83.16-18). Como o pecado é uma afronta à santidade de Deus, afirma Davi, de forma compatível deve ser julgado.

2. Os autores do Livro dos Salmos tinham completa consciência do fato de que a vingança é uma prerrogativa divina. Em Deuteronômio 32.35, lemos: “A mim me pertence a vingança, a retribuição”. As imprecações devem ser entendidas como orações a Deus e não como as pretendidas ações dos próprios salmistas. Dessa forma, a causa do salmista se identifica com a causa de Deus (Sl 139.19-22)[11]. É, portanto, dever do salmista orar pela derrota dos inimigos de Deus. Johannes Vos disse isso desta maneira:

A total destruição do mal, incluindo a destruição judicial dos homens maus, é a prerrogativa do soberano Deus, e é certo não somente orar pelo cumprimento dessa destruição, mas também assistir sua realização quando comandado a fazê-lo pelo próprio Deus [...] Deus é tanto soberano quanto justo; ele tem o direito inquestionável de destruir todo mal em seu universo; se é certo para Deus planejar e executar essa destruição, então também é certo para os santos orar pelo mesmo[12].

3. Ao contrário da crítica dos céticos, a atitude do salmista não é de vingança. Davi recusa tal noção em Salmos 109.5, onde lemos: “Pagaram-me o bem com o mal; o amor, com ódio”. Em duas ocasiões, quando surgiu uma oportunidade, Davi se recusou a tirar a vida de Saul (2Sm 24 e 26). Além disso, ele até orou por seus inimigos quando eles estiveram em necessidade (Sl 35.12-14). E, em Salmos 83.16-18, lemos que o salmista busca a salvação final do perverso: “Enche-lhes o rosto de ignomínia, para que busquem o teu nome, SENHOR. [...] E reconhecerão que só tu, cujo nome é SENHOR, és o Altíssimo sobre toda a terra”. Todd Ruddel comentou:

As palavras dos salmos devem ser entendidas [...] não como uma expressão de um autor irado ou fulminações de um incendiário, mas como os sentimentos do próprio Deus, os pensamentos do salmista sendo elevados pelo poderoso Espírito de profecia acima da mera vendeta e maldição humana. As expressões do salmista são expressões de Deus. São os pensamentos do coração de Deus[13].

4. Orar as orações imprecatórias é orar pela derrota de Satanás e seus subordinados. Se o reino de Deus deve avançar, de acordo com a Oração do Senhor (que muitos crentes gostam de orar) – “venha o teu reino; faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6.10) -, então o reino do mal deve ser destruído. A glória de Deus necessita a destruição do ímpio. Orações imprecatórias têm esse objetivo. A Oração do Senhor é, ela mesma, uma oração para a derrota do mal.

5. Junto dessa linha de pensamento, os escritores inspirados reconhecem que Deus é a única real defesa do eleito quando ele é assaltado pelo réprobo. Por isso, orar contra os inimigos do salmista é orar por ajuda para o povo de Deus. Em Salmos 7.9-10, por exemplo, lemos: “Cesse a malícia dos ímpios, mas estabelece tu o justo [...] Deus é o meu escudo; ele salva os retos de coração”.

Conclusão

Uma visão bíblica dos salmos imprecatórios não os reconhece como problemáticos. Invocar a punição divina para os inimigos de Deus e de seu povo é orar de acordo com a vontade revelada de Deus. Afinal, esses salmos são uma parte do infalível e inerrante “conjunto de canções e orações que cobre uma variedade de temas”. E ele, sendo tão inspirado quanto o resto da Escritura, é “útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2Tm 3.16-17).
Assim sendo, Vos concluiu corretamente:

Em vez de ser influenciado pelo sentimentalismo débil do dia presente, o povo cristão deve perceber que a glória de Deus demanda a destruição do mal [...] portanto, em vez de ter vergonha dos salmos imprecatórios e tentar desculpar-se por eles e minimizá-los, o povo cristão deve se gloriar neles e não hesitar em usá-los no exercício público e privado da adoração[14].

Soli Deo Gloria




NOTAS:

[1] – Brantley, “Prayers of Destruction” em Reason and Revelation (Montgomery: Apologetics Press, volume XII, número 12, dezembro de 1992), 45.

[2] – Gleason L. Archer, A Survey of Old Testament Introduction (Chicago: Moody Press, 1964, 1974), 460. Como veremos, os inimigos do salmista também são inimigos de Deus.

[3] – J. A. Motyer, “Imprecatory Psalm s” em Evangelical Dictionary of Theology, editado por W alter A. Elwell (Grand Rapids: Baker Book House, 1984), 554.

[4] – Michael Bushell, The Songs of Zion (Pittsburgh: Crown & Covenant Publications, 1977), 34-37; Johannes G. Vos, “The Ethical Problem of the Imprecatory Psalms” em The Westminster Theological Journal, editado por Paul Woolley e John Murray (Philadelphia: W estm inster Theological Seminary, november de 1941 a maio de 1943), volumes IV e V, 124-130; Brantley, “Prayers of Destruction”, 46-47. Os escritores listados nesta nota não aderem a essas teorias “inadequadas”; em vez disso, afirmam que elas são “inadequadas”.

[5] – Charles H. Spurgeon, The Treasury of David (Grand Rapids: Guardian Press, 1981), III: 266. C. F. Keil e F. Delitzsch também tomam a posição de que, embora exista um meio pelo qual o santo da Nova Aliança possa cantar os salmos imprecatórios, esses salmos devem ser vistos primariamente como predições (Commentary on the Old Testament, traduzido por James Martin [Grand Rapids: reimpresso em 1980], V: 74-75).

[6] – Brantley, “Prayers of Destruction”, 46.

[7] – Bushell, The Songs of Zion, 35-36.

[8] – Brantley, “Prayers of Destruction”, 46-47.

[9] – Para mais sobre o assunto, veja John Robbins, “The Reconstructionist Road to Rome” em The Trinity Review maio-junho de 1992.

[10] – John Calvin, Commentaries, volumes 1-22 (Grand Rapids: Baker Book House, 1981), Comentário sobre Salmo 69:22.

[11] – Veja Jonathan Edwards, The Works of Jonathan Edwards, volume 18, “The Miscellanies”, 501-832, editado por Ava Chamberlain (New Haven: Yale University Press, 2000), Miscellany 640.

[12] – Vos, “The Ethical Problem of the Imprecatory Psalms”, 135-136.

[13] – Todd Ruddell, “Psallo” em The Confessional Presbyterian, editado por Chris Coldwell (volume 1, 2005), 164.

[14] – Vos, “The Ethical Problem of the Imprecatory Psalms”, 138.