sábado, 1 de março de 2014

A VISÃO CALVINISTA DO ESTADO E DA SOCIEDADE (por Alderi Souza de Matos) - Parte 01 de 02

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Introdução

A concepção calvinista acerca do Estado e da sociedade tem como ponto de partida o pensamento do próprio reformador João Calvino (1509-1564) conforme expresso nas Institutas da Religião Cristã e em seus comentários, sermões, tratados e cartas. Essa visão também foi articulada por outros líderes e teólogos reformados, contemporâneos de Calvino e posteriores a ele, tais como Ulrico Zuínglio, Henrique Bullinger, John Knox, Abraham Kuyper e Karl Barth, entre outros, bem como pelos documentos confessionais da fé reformada (confissões de fé e catecismos).

Em seus escritos, Calvino disse muitas coisas importantes a respeito do Estado, da sociedade e dos problemas sociais. Todavia, ele não foi um político, um sociólogo ou um ativista social, e sim um pastor e um estudioso das Escrituras. Portanto, não se deve dissociar o seu pensamento social e econômico da sua reflexão teológica. Esse pensamento resultou de seus pressupostos teológicos e bíblicos, dentre os quais as convicções de que Cristo é Senhor de todos os aspectos da existência humana e de que a Palavra de Deus contém princípios que devem reger todas as áreas da vida. Dessas duas premissas fundamentais – a soberania de Deus sobre toda a vida e a centralidade das Escrituras como revelação de Deus – decorre todo o pensamento teológico de Calvino, inclusive as suas concepções sobre a ordem política e a ordem social.[1]

Por outro lado, não se deve esquecer que Calvino era um homem do seu tempo e que vários aspectos da sua reflexão foram condicionados pelas realidades políticas e sociais da sua época. Isso significa que o seu pensamento padece de algumas limitações, que mais tarde foram sanadas por herdeiros da fé reformada. O mais importante é o fato de que, desde os seus primórdios, a tradição reformada entendeu que a fé bíblica tem importantes implicações não só para o indivíduo, mas para a coletividade, a começar da vida política e da relação entre a Igreja e o Estado.

1. Igreja e Estado

Assim como Lutero, também os fundadores da tradição reformada, Zuínglio e Calvino, reconheceram a importância e a legitimidade do Estado. Ao mesmo tempo, eles destacaram que Igreja e Estado são duas esferas distintas, que não devem ser confundidas. Calvino abordou essa temática no último capítulo das Institutas (Livro IV, Cap. 20), intitulado “O Governo Civil”. Ele afirma na Seção 1: “O reino espiritual de Cristo e a ordem civil são duas coisas completamente diferentes”. Também diz: “Não podemos – como comumente acontece – imprudentemente confundi-las, pois ambas têm uma natureza completamente distinta”. Essa distinção entre a Igreja e o Estado significa que cada domínio tem o direito de existir e que o Estado, assim como a Igreja, também é estabelecido por Deus, devendo, portanto, ser igualmente respeitado pelos cristãos.[2] Portanto, a Igreja não deve usurpar as funções do Estado nem o Estado, as funções e prerrogativas da Igreja.

Porém, depois de afirmar essa distinção das duas esferas, Calvino afirma que elas não devem ficar separadas: “Assim como acabamos de indicar que o governo temporal é distinto do Reino espiritual e interior de Cristo, também temos de saber que eles não são contraditórios” (Inst., 4.20.2). Isso leva a uma importante diferença entre o pensamento de Lutero e o dos reformadores suíços. Lutero tinha certa indiferença em relação ao Estado e queria deixá-lo ao capricho da razão humana. Ele transferiu as categorias de “lei e evangelho” às categorias de “Estado e Igreja”. Para ele, o Estado é a esfera da lei; sua marca essencial é a espada. A Igreja tem a ver com o evangelho. Zuínglio e Calvino tiveram um entendimento diverso. Eles afirmaram que existe uma relação entre a Igreja e o Estado, e isso decorre do fato de que o Senhor proclamado pela Igreja é também o Senhor do reino político.

A posição de Calvino acerca do Estado é motivada em parte pelas atitudes dos anabatistas, que advogavam a indiferença e o afastamento dos cristãos em relação ao Estado e à vida pública e, em parte, pela glorificação da realeza que era típica do século 16 (por exemplo, na obra O Príncipe, de Maquiavel).[3] À luz das Escrituras, Calvino afirma que o governo civil é uma dádiva de Deus (ver Romanos 13) e que o ofício de governante é uma elevada vocação, a mais sagrada e honrosa que existe (Inst., 4.20.4). Ele explica que o propósito do regime terreno é “proteger o serviço externo de Deus, defender o sadio ensino da piedade e a condição da igreja, regular as nossas vidas para a sociedade humana, moldar a nossa moral para a justiça civil, reconciliar-nos uns aos outros, e fomentar a paz e tranqüilidade comum” (Inst., 4.20.2).

Ao discutir qual das três formas de governo é preferível – monarquia, aristocracia ou democracia – Calvino vê perigos em todas elas, mas expressa a sua preferência pela aristocracia (o governo dos melhores) ou por uma associação entre aristocracia e democracia. Ele dá mais atenção aos deveres do que aos direitos dos governantes. Tais deveres estão sintetizados no Decálogo. O seu primeiro dever é cuidar da piedade conforme exposta na primeira tábua da lei. A segunda tábua mostra que ele deve criar as condições nas quais os seres humanos possam viver em harmonia com os seus semelhantes. No que diz respeito aos deveres dos cidadãos para com os governantes, Calvino é igualmente enfático. Estes devem ser obedecidos, quer sejam bons ou maus. Essa deferência é devida ao ofício, não ao ocupante do ofício. Somente órgãos constitucionalmente instituídos podem interferir a fim de salvar o Estado ou melhorar a condição do povo.

A desobediência civil ou a rebelião somente se justificam quando o Estado quer obrigar as pessoas a desobedeceram a Deus (ver os sermões e comentários de Calvino sobre Daniel 6). Apesar de o Estado se basear numa ordem divina, ele nunca ocupa o lugar de Deus. Tendo ordenado o governo, Deus continua sendo Senhor sobre a sua ordenação, e o governo continua estando sujeito a Deus. A obediência a Deus e a obediência ao governo temporal são sempre duas coisas diferentes, bem como a obediência ao governo sempre vem depois da obediência a Deus, porque ele é o Senhor da Igreja e do Estado.[4] Esse entendimento foi importante para Karl Barth em 1933-1934 ao criticar a posição da igreja evangélica alemã que equiparava o Estado de Hitler com o “servo de Deus”. O texto bíblico clássico ao qual os reformados apelam aqui é Atos 5.29. Nenhum cristão ou igreja deve lealdade incondicional a qualquer governo ou sistema político, seja qual for, mas somente a Deus.

Para os próceres da tradição reformada, existe uma relação entre o Estado e a Igreja, assim como entre a lei e o evangelho. Não se pode separar a justiça de Deus da sua graça. A Igreja não pode simplesmente delegar a noção de lei ao Estado. Sua proclamação deve incluir tanto a lei como o evangelho, visto que ambos são formas da justa graça de Deus.[5] Assim sendo, o cristão não pode ser indiferente à maneira como as autoridades governam, devendo se esforçar e cooperar para que as leis se tornem mais harmoniosas com a vontade de Deus. Em virtude disso, os líderes reformados insistiram em falar sobre a tarefa do Estado. Sua função principal não é levar a espada, impor punição e fazer uso da força, mas preservar a vida e a comunidade, promover “a justiça e a paz” (Zuínglio), “o bem-estar e a paz comum” (Calvino), para que “exista humanidade entre as pessoas” (Inst., 4.20.3). Para eles, o primeiro requisito para a humanização do Estado era proteger os fracos dos fortes (Inst., 4.20.12). A verdadeira justiça consiste em misericórdia para com o fraco e o necessitado.





[1] Ver LOPES, Augustus NicodemusCalvino e a responsabilidade social da igreja. São Paulo: PES, s/d.
[2] BUSCH, Eberhard, Igreja e política na tradição reformada. In McKIM, Donald K. (Ed.). Grande temas da tradição reformada. São Paulo: Pendão Real, 1999. p. 162.
[3] Ver PARKER, T.H.L. Calvin: an introduction to his thought. Louisville, KY: Westminster/John Knox, 1995. p. 157.
[4] BUSCH, Igreja e política na tradição reformada, p. 165.
[5] Ibid., p. 166.