sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Calvino e a falácia da Graça Evanescente (por Ysmael Jonnathas)

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É muito comum em debates as pessoas utilizarem de falácias (de forma intencional ou não) para validarem suas opiniões e crenças, e no debate Calvinismo x Arminianismo não seria diferente, ainda mais quando sabemos da total depravação do homem.

Uma das falácias mais utilizadas é a falácia do espantalho. Ela consiste em distorcer a posição/opinião de alguém e contra-argumentar “refutando” esta visão distorcida como se estivesse atacando a posição original. 

Por exemplo:
- Charles tem um posicionamento X sobre Z,
- Então Wesley diz que Charles tem o posicionamento Y sobre Z
- Wesley ataca a posição Y alegando que ela pertence a Charles, e diz que Charles está errado pois Y não pode ser verdade, sendo que Charles nunca defendeu Y e sim X.

Estes espantalhos são muito comuns da parte daqueles que tentam denegrir os escritos de João Calvino. Não é muito difícil se encontrar espantalhos como o de que Calvino disse que Deus era autor do pecado (basta ler o comentário do reformador sobre Isaías 45:7, para saber que é mentira); ou que Calvino ensinou que Jesus e Miguel eram a mesma pessoa (basta ler as Institutas, Livro I, Cap. XVIII, pág, 135 e o Capítulo XIV, pág 170-171, para ver que Calvino acreditava que Jesus é Deus e Miguel é um anjo); ou então que Calvino ensinou a teologia da prosperidade; enfim, existem tantos espantalhos sobre Calvino quanto a imaginação do homem pode inventar.

Um espantalho que vem ganhando força no cenário teológico brasileiro é o de que Calvino ensinou uma suposta graça evanescente. Vale a pena destacar que tal termo é estranho aos escritos de Calvino (não aparece em nenhum lugar), e tal falácia é relativamente recente. Ela ganhou certo conhecimento em outubro de 2008 quando o blog Arminian Perspectives publicou a respeito dela, e vem crescendo no Brasil nos últimos anos quando apologistas arminianos a citam como se fosse verdade.

Entre os apologistas arminianos geralmente se encontra a seguinte definição para graça evanescente:
A Graça Evanescente é a doutrina ensinada por Calvino em que Deus implanta fé nos réprobos, faz com que eles vivam como eleitos, sendo que, por vezes, não há praticamente nenhuma diferença entre os eleitos e os não-eleitos. Isso porque o réprobo, através da graça evanescente, "pode, por vários anos produzir frutos".
E para defender tal definição eles alegam que Calvino ensinou isso nas Institutas 3.2.11 e em seu Comentário de Hebreus 6:4.

Vamos agora avaliar tal definição descrita pelos os arminianos e compara-la com os escritos de Calvino, enfatizando as partes onde os Arminianos afirmam que Calvino as ensinou.

PARTE 1 - “DEUS IMPLANTA FÉ NELES”

Em nenhum lugar das Institutas existe tal afirmação, pelo contrário, justamente onde os Arminianos falam que Calvino ensinou a graça evanescente, ele afirma que a fé é algo próprio dos eleitos, se não vejamos:
ainda que os réprobos NÃO SEJAM iluminados à FÉ, nem sintam verdadeiramente a eficácia do evangelho, a não ser aqueles que foram preordenados para a salvação, contudo a experiência mostra que os réprobos são às vezes afetados por sentimento quase semelhante ao dos eleitos, de sorte que, EM SEU PRÓPRIO JULGAMENTO, de fato não diferem em coisa alguma dos eleitos.”
(Institutas, Livro III, Capítulo II, parte 11, página 35)
Calvino corretamente diz que os réprobos NÃO TÊM FÉ, mas que eles têm um SENTIMENTO, que no entendimento do RÉPROBO não difere em coisa alguma do eleito.
Observe, que Calvino NÃO DIZ que Deus implantou fé neles, mas que eles têm um sentimento de serem convertidos proveniente de SEU PRÓPRIO JULGAMENTO.
E deve ser ressaltado ainda que Calvino já havia dito anteriormente, que estes simulavam fé, e eram persuadidos a crerem que eram salvos por eles mesmos e não por Deus.
“de sorte que apresentam falaz SIMULAÇÃO de fé não apenas aos olhos dos homens, mas até mesmo sua própria mente. POIS SE PERSUADEM de que a reverência que deferem à Palavra de Deus é realmente piedade, porquanto não consideram haver impiedade, a não ser o manifesto e confesso desrespeito ou desprezo dela” 
(Institutas, Livro III, Capítulo II, parte 10, página 34).
Talvez você objete: "mas Calvino afirma que Deus quem iluminou tais homens".
É claro quem foi Deus que iluminou, a bíblia ensina claramente que tudo que se pode conhecer de Deus é porque Ele o manifestou, e note que Deus faz isso para que a humanidade fique indesculpável perante Ele:

Porquanto o que de Deus se pode conhecer neles se manifesta, porque Deus lho manifestou. Porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o Seu eterno poder, como a Sua divindade, se entendem, e claramente se vêem pelas coisas que estão criadas, para que eles fiquem inescusáveis”
A este ponto você talvez esteja pensando: "OK, Calvino não ensinou que os réprobos têm uma fé que Deus implantou neles, mas seria que esse ensino de que um réprobo pode pensar que é salvo é bíblico?". Claro, basta olharmos Mateus 7:21-23. Muitas pessoas julgavam em seu próprio entendimento serem salvas (afinal em nome de Cristo profetizaram, expulsaram demônios e fizeram muitas maravilhas), mas qual a resposta de Cristo para elas? “NUNCA vos conheci”. Cristo deixa claro que elas NUNCA foram regeneradas ou fizeram parte dos salvos. Essas pessoas sempre praticaram a iniquidade embora achassem em seu próprio julgamento que eram cristãos.

Ainda a respeito da fé Calvino diz que quando patenteada aos incrédulos é indigno do título de fé.
“Esta sombra ou imagem de fé, porém, visto ser de nenhuma relevância, por isso é indigna do título de fé” 
(Institutas, Livro III, parte 10, página 34).
Portanto o sentimento que o réprobo tem que persuade a si mesmo não deve ser chamada de fé, deste modo Calvino refere-se a tal sentimento, como “fé informe ou fé temporária”

CONCLUSÃO DA PARTE 1: 
Calvino ensinou que os réprobos não possuem fé, mas que eles podem vir a ter um sentimento de crença em Deus e vir a pensar que são de fato cristãos, mas tal sentimento parte de sua própria persuasão e não porque Deus implantou neles.


Vamos analisar agora, a próxima afirmação da definição:

PARTE 2 - “FAZ COM QUE VIVAM COMO OS ELEITOS ...NÃO HÁ PRATICAMENTE NENHUMA DIFERENÇA ENTRE OS ELEITOS E OS NÃO ELEITOS”

Chega a ser um tanto quanto absurdo atribuir tal frase a Calvino como sendo um de seus ensinos. Ela não se encontra em nenhum lugar das Institutas e, ao contrário, Calvino mostra (no capítulo II do livro III) diversas diferenças entre os Eleitos e os Réprobos. O que Calvino corretamente ensinou (como demonstrado acima) é que o réprobo em seu próprio entendimento se persuade a crer que é igual ao eleito. Vejamos:
“De qualquer natureza, porém, que seja esse assentimento, de modo nenhum penetra até o coração, de sorte que aí resida fixo; e ainda que por vezes pareça haver lançado raízes, entretanto essas não são vivas. Tantos recessos de fatuidade tem, de tantos antros de falsidade se enche o coração humano, de tão enganosa hipocrisia é recoberto, que freqüentemente ENGANA A SI PRÓPRIO. Compreendam, pois, os que se gloriam de tais aparências e simulacros de fé que, neste aspecto, em nada lucram aos diabos. Aqueles de quem primeiro falamos lhes são de fato muito inferiores, os quais, apalermados, ouvem e compreendem coisas por cujo conhecimento os diabos estremecem [Tg 2.19]; os outros nisto lhes são pares: qualquer que seja a natureza do sentimento de que são tocados, termina, afinal, em terror e consternação.”
Note que aqui Calvino mostra que ter o conhecimento e crer na existência de Deus não implica em fé. Os demônios creem e temem a Deus (Tiago  2:19), então alguém afirmar e se gloriar que acredita na existência de um só Deus, não torna este alguém em eleito. Na verdade, se este indivíduo se gloria neste simulacro de fé, ele engana a si próprio.

Possivelmente o apologista arminiano apele para a seguinte citação afim de defender que Calvino ensinou que não há diferença entre o Eleito e o não eleito.
“Se, pois, alguém objeta que aos fiéis não se deixa coisa alguma com que estejam seguros e nutram a certeza de sua adoção, respondo que, embora seja grande a semelhança e afinidade entre os eleitos de Deus e os que são dotados por algum tempo de fé transitória”
Como já mostrado anteriormente, para Calvino o título de fé é somente digno aos eleitos portanto aos réprobos é atribuída a expressão “fé informe ou fé temporária/ transitória”. Tal sentimento, que segundo Calvino parte da própria persuasão do homem e não porque Deus implanta neles, muitas vezes levam os réprobos a apresentarem semelhanças em relação aos eleitos, como já mostramos anteriormente. Eles clamaram pelo nome do Senhor, expulsaram demônios, e etc (Mateus 7:21-23), mas veja que em nenhum momento Calvino afirma que eles andarão segundo o fruto do Espírito Santo (Gl 5:22-26). Ou seja, Calvino não ensinou que um réprobo viverá conforme o Amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança, portanto é impossível dizer que Calvino ensinou que um réprobo viverá igual a um eleito. Pelo contrário, Calvino mostra que há diversas diferenças entre estes grupos:
“contudo somente nos eleitos viceja aquela confiança que Paulo celebra, de modo que clamem em alta voz: Abba, Pai [Rm 8.15; Gl 4.6]. Portanto, assim como somente aos eleitos Deus regenera para sempre com uma semente incorruptível [1Pe 1.23], de sorte que jamais pereça a semente de vida implantada em seu coração, assim também neles sela solidamente a graça de sua adoção, para que ela seja estável e confirmada. Entretanto, isto de modo algum impede que essa opera- ção inferior do Espírito tenha seu curso até mesmo nos réprobos. Não obstante isto, os fiéis são ensinados a examinar-se a si próprios cuidadosa e humildemente, para que a confiança da carne não se insinue sorrateira em lugar da certeza da fé.” 
(Institutas, Livro III, parte 11, página 35).

E diz mais ainda acerca dos eleitos:
“Isto, contudo, deve se manter: por mais exígua e débil que a fé seja nos eleitos, entretanto, uma vez que o Espírito de Deus lhes é o seguro penhor e selo de sua adoção [Ef 1.14], jamais se pode apagar de seus corações o que ele neles gravou. Quanto à iluminação dos réprobos, finalmente se dissipa e perece, sem que possamos dizer por isso que o Espírito engana a alguém, pelo fato de que não vivifica a semente que jaz em seu coração, de sorte que permaneça sempre incorruptível como nos eleitos.” 

(Institutas, Livro III, parte 12, página 36).
CONCLUSÃO DA PARTE 2: 
Como podemos observar, Calvino não ensinou que os réprobos vão andar segundo o espírito embora alguns clamem Senhor, Senhor (Mateus 7:21-23), ele faz distinção entre a fé do eleito que parte da vivificação do Espírito Santo, enquanto que o sentimento do réprobo parte de sua própria persuasão.

Continuando, vamos a próxima frase da definição inventada pelos apologistas arminianos:

PARTE 3 - “PODE POR VÁRIOS ANOS PRODUZIR FRUTOS”

Nesta afirmação, vemos mais uma vez o uso claro da falácia do espantalho, observe o que Calvino disse:
“Nego, porém, que eles ou apreendam a vontade de Deus, como é imutável, ou com real constância lhe abracem a verdade; por isso é que se detêm em um sentimento evanescente, como uma árvore, plantada não bastante funda para produzir raízes vivas, seca-se no decurso do tempo, ainda que por alguns anos SIMULE não só flores e folhas, mas até mesmo frutos.” 
(Institutas, Livro III, Capítulo II, ponto 12, página 36)
Calvino não diz que dão frutos, mas sim que SIMULAM FRUTOS. Ora qualquer pessoa sabe que algo simulado não é real, a exclusão proposital da palavra “simule” demonstra bem o uso da falácia do espantalho.

CONCLUSÃO DA PARTE 3:
Calvino não ensinou que os réprobos dão frutos.

PARTE 4 – OS USOS DA PALAVRA EVANESCENTE.

Como demonstrado acima, a expressão “graça evanescente” não aparece nas institutas, nem a definição dada a tal graça é condizente com os ensinos de Calvino, portanto se caracterizando como a falácia do espantalho. Entretanto, esta parte do texto foi reservada para avaliar e analisar o que Calvino ensinou nos momentos que aparecem a palavra evanescente.

Vamos aos locais que ela aparece:
“porque nada impede que Deus ilumine a alguns com o senso de sua presente graça, SENSO que mais tarde se desvanece.” 
“por isso é que se detêm em um SENTIMENTO evanescente, como uma árvore, plantada não bastante funda para produzir raízes vivas, seca-se no decurso do tempo” 
Portanto, no réprobo há aquele CONHECIMENTO que mais tarde se desvanece, seja porque ele estende suas raízes com menos profundidade do que se espera, ou porque, ao crescer, é sufocado e murcha.”
(Trecho do comentário de Calvino acerca de Hebreus 6:4)

Como o caro leitor pode observar, Calvino não atribui o esvanecer à Graça salvadora de Deus. Em nenhum lugar ele diz que a graça salvadora de Deus esvaneceu. O que Calvino corretamente coloca como evanescente é o SENSO DO SENTIMENTO DE CONHECIMENTO acerca de Deus.

Mas, seria tal ensino bíblico?

Simples, vejamos a parábola utilizada por Calvino para explicar tal ensino:
O que foi semeado em pedregais é o que ouve a palavra, e logo a recebe com alegria, Mas não tem raiz em si mesmo, antes é de pouca duração; e, chegada a angústia e a perseguição, por causa da palavra, logo se ofende;
Aqui vemos um réprobo, que ouve (senso) a palavra de Deus (conhecimento) e que recebe esse senso com alegria (sentimento), mas por sua culpa é de pouca duração (evanesce).

Jesus ensinou claramente que alguns réprobos (que não são terrenos férteis e sim pedregosos) vão ouvir a palavra, vão recebe-la com alegria (sentimento) mas vão deixar este sentimento acabar, se esvanecer. E isso não tem nada de graça evanescente, e muito menos conforme a definição dada pelos arminianos, são as palavras verdadeiras de Cristo, nosso Salvador.

CONCLUSÃO FINAL

A verdade é que tal expressão “graça evanescente” não aparece em nenhum lugar das Institutas ou tão pouco de seus comentários bíblicos, tal expressão foi criada por arminianos, bem como sua definição que não somente apresentam uma visão distorcida dos ensinos de Calvino mas que vão contra os escritos do reformador. Portanto aqui podemos ver claramente, mais uma falácia do espantalho desenvolvida com o objetivo de denegrir a imagem de Calvino.