terça-feira, 18 de abril de 2017

Fé Implícita X Fé Explícita - em Calvino: Uma Introdução (por Heber R. Bertuci)

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Uma das principais ênfases dos reformadores era que todos pudessem conhecer as doutrinas da Palavra de Deus. João Calvino (1509 - 1564), por exemplo, ensinava que a fé não devia ser implícita, mas explícita. Como entender a fé para que se possa adjetiva-la de implícita ou explícita? De modo geral, a fé pode ser entendida de duas maneiras que se completam: em primeiro lugar, é uma certeza que existe no coração do eleito de Deus. O autor de Hebreus diz que a fé é a "... certeza de coisas que se esperam". (11,1a). O termo certeza aqui é hypostasis, que significa substância. Uma tradução para o verso é: "... a fé é a substancia de coisas que se esperam". Segundo a linha dos reformadores, hypostasis não pode ser entendido com o sentido objetivo de substancia, mas indica o subjetivo de certeza. O termo indica, portanto, algo real, que espero, que Deus me assegura por sua Palavra que virá. "Se eu estou certo de algo, tenho certeza no meu coração. Esse é um conhecimento subjetivo porque está dentro de mim. Certeza, então, é uma qualidade subjetiva." (Kistemaker, 2003, Hb 11,1, p. 435). Em segundo lugar, a fé é um conteúdo que indica quem é Deus e qual a sua vontade para tudo o que ele criou. Um dos Pais Apologistas, conhecido como Ireneu de Lion (130 - 202), fala da regula fidei (Regra de Fé) em sua exposição teológica. O termo grego correspondente ao latim regula é kanon, que dentre outros significados, quer dizer: padrão ou diretriz. A Regra da Fé, para Ireneu, é o padrão correto que é expresso na Escritura, no Credo Apostólico e na pregação da Igreja. Trata-se, portanto, de um conteúdo doutrinário. Na sua obra Demonstração da Pregação Apostólica, que também é considerada como o mais antigo Catecismo de Doutrina Cristã, Ireneu exorta: "Ora, pelo temor de qualquer coisa de similar, nós devemos manter inalterada a Regra da Fé e cumprir os mandamentos de Deus crescendo nele, temendo-o como Senhor, e amando-o como Pai." (n. 3). Conforme vemos, desde o segundo século da Era Cristã que se pede que o povo de Deus mantenha inalterada a sua doutrina, a sua Regra da Fé ou conteúdo da fé.

Calvino (1509 - 1564), séculos depois de Ireneu (130 - 202), ensina que este conteúdo da fé não pode ser implícito. A fé implícita é aquela que leva o fiel a ter "... uma submissão inquestionável aos ensinos da Igreja sem que sejam realmente entendidos." (Hoekema, 1999, p. 143). Este ato é próprio do catolicismo medieval. Ao comentar o texto de I Tm 1,1, em que Paulo escreve que é "... servo de Deus e apóstolo de Jesus Cristo, para promover a fé que é dos eleitos de Deus e o pleno conhecimento da verdade segundo a piedade", Calvino diz que a conjunção kai, traduzida por "e", liga a expressão "a fé que é dos eleitos de Deus" a "... o pleno conhecimento da verdade". Paulo define que um dos aspectos da fé é o conhecimento da verdade e "... não está meramente distinguindo-a de opinião, mas daquela fé forjada e implícita inventada pelos papistas. Pois por fé implícita eles querem dizer algo destituído de toda luz da razão." (1998a, p. 299). No comentário ao texto de Gl 1,8, em que Paulo escreve: "Mas, ainda que nós ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema", Calvino diz: "Que costume é esse de professar o evangelho sem saber o que ele significa? Para os papistas, que se deixam dominar pela fé implícita, tal coisa pode ser suficiente. Mas para os cristãos não existe fé onde não haja conhecimento." (1998b, p. 22). [1]

Quem eram os papistas que Calvino (1509 - 1564) critica como os propagadores da fé implícita? Eram todos os que mantinham os dogmas e as doutrinas católicas e ensinavam os fiéis a obedecê-las inquestionavelmente, sem pesquisa. Contra eles, o reformador enfatiza a fé explícita: uma fé pesquisada, estudada e analisada; em síntese, uma fé bereana, conforme lemos em At 17,11: "Ora, estes de Beréia eram mais nobres que os de Tessalônica; pois receberam a palavra com toda a avidez, examinando as Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim." Nas Institutas, Calvino deixa bem claro que a fé não é um mero assentimento aos mandamentos da Igreja, mas é uma resposta consciente e intelectual à mensagem da Escritura. Primeiro, ele diz: "Será que crer é isto, não entender nada, contanto que obedientemente submetas teu intelecto à Igreja? A fé está situada não na ignorância, mas no conhecimento, e, de fato, depende não só de Deus, mas também da vontade divina." (III,II,2). Depois, ele ensina que não alcançamos a salvação abraçando como verdadeiro tudo o que a Igreja tiver pesquisado e determinado, "... mas por sabermos que Deus é nosso Pai benévolo, em virtude da reconciliação realizada por intermédio de Cristo, e que Cristo nos foi dado em justiça, santificação e vida." (Ibid.). Este é o princípio calvinista de que a salvação vem de Cristo e não da Igreja visível. Ao comentar Rm 10,10: "Porque com o coração se crê para justiça e com a boca se confessa a respeito da salvação", o reformador diz que Paulo "... indica que não é suficiente um homem crer implicitamente naquilo que não entende e tampouco procura entender, mas requer um conhecimento explícito da bondade divina, em que consiste nossa justiça." (Ibid.). A "... fé repousa no conhecimento de Deus e de Cristo (Jo 17,3), não na reverência à Igreja." (III,II,3). Portanto, o erro dos papistas é defender que estão corretos os que se satisfazem em apenas dar "... seu assentimento à autoridade e ao julgamento da Igreja. Como se a Escritura não ensinasse a cada passo que a inteligência está unida à fé!" (Ibid.).

No entanto, para Calvino (1509 - 1564) a fé pode ser chamada de implícita quando Deus não revelou determinado assunto em sua Palavra: Ainda nas Institutas, ele escreve: "Nós concedemos que a fé, enquanto peregrinamos por este mundo, seja implícita; não só porque até agora muitas coisas estão ocultas, mas porque, rodeados pelas trevas de numerosos erros, não compreendemos tudo." (III,II,4). Mas, percebe-se que a fé neste sentido se torna implícita por causa de Deus, e não por causa de nossa omissão em proclamar cada verdade da revelação de Deus. Foi Deus quem não nos quis revelar todos os assuntos, mas o que ele revelou nas Escrituras é certo e confiável. Não posso deixar de reconhecer que esta não compreensão do homem é necessária nesta vida para ensiná-lo que tem limite e que depende de Deus. Calvino diz que a cada dia, ao lermos a Escritura, encontramos "... muitos passos obscuros, que nos convencem de nossa ignorância. Com um tal freio, Deus nos mantém na modéstia, distribuindo a cada um uma porção de fé, a fim de que até mesmo o melhor e mais douto esteja sempre pronto a aprender." (Ibid.). Dt 29,29 deixa claro: "As coisas encobertas pertencem ao SENHOR, nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem, a nós e a nossos filhos, para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei." Encerro esta explicação com mais uma frase de Calvino, que tem muito a nos ensinar: "... não esquadrinhemos nem queiramos saber o que o Senhor escondeu e não deseja que se saiba; e que não menosprezemos o que Ele nos manifestou e declarou com sua Palavra; para que, por um lado, não sejamos condenados por nossa excessiva curiosidade, e, por outro, por nossa ingratidão." (III, XXI, 4).





TEXTOS CONSULTADOS

Bento XVI. Santo Irineu de Lyon. In: _____. Os Padres da Igreja: de Clemente Romano a Santo Agostinho. Tradução de Silva D. C. Reis. São Paulo - SP: Paulus, 2012. p. 25 - 30. (Audiência geral de 28 de março de 2007). [Coleção "Catequese do Papa"].


Calvin, John. Commentary on the Epistle to the Galatians. Albany, OR USA: AGES Software, 1998b. 1 CD-ROM. 197 p. (The Ages Digital Library Commentary, Version 1.0).


Calvino, João. A instituição da religião cristã. Tradução de Elaine C. Sartorelli et al. São Paulo - SP: UNESP, 2009. 902 p. [Tomo II, Livros III e IV]. (Edição integral de 1559).


Calvino, João. As pastorais: I Timóteo, 2 Timóteo, Tito e Filemon. Tradução de Valter G. Martins. São Paulo - SP: Paracletos, 1998a. 379 p.


Hägglund, Bengt. História da teologia. Tradução de Mário L. Rehfeldt e Gládis K. Reehfeldt. Porto Alegre - RS: Concórdia, 1973. 370 p.


Hoekema, Anthony. Salvos pela graça: a doutrina bíblica da salvação. Tradução de Wadislau G. Martins. 2. ed. [rev. ]. São Paulo - SP: Cultura Cristã, 2002. 287 p.


Ireneu de lyon. Demonstração da pregação apostólica. Tradução de Ari L. do V. Ribeiro. São Paulo - SP: Paulus, 2014. 150 p. (Coleção Patrística, nº 33).


Kistemaker, Simon. Hebreus. Tradução de Marcelo Tolentino. São Paulo - SP: Cultura Cristã, 2003. 639 p.


Nota:

[1] "Of what avail was it to profess respect for the gospel, and not to know what it meant? With Papists, who hold themselves bound to render implicit faith, that might be perfectly sufficient; but with Christians, where there is no knowledge, there is no faith." (Tradução do autor).


Extraído de:
http://leituraeteologia.blogspot.com.br/2016/02/fe-implicita-x-fe-explicita-em-calvino.html