quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Infralapsarianismo e Supralapsarianismo

Infralapsarianismo e Supralapsarianismo: duas formas reformadas de organizar os decretos de Deus

Dentro da teologia reformada, há debates que não tratam de se Deus é soberano, mas de como descrevemos (com categorias humanas) aquilo que Deus revelou sobre o seu plano eterno. Um desses debates — frequentemente mal compreendido — é a distinção entre infralapsarianismo e supralapsarianismo.

É fundamental começar com um esclarecimento: infra e supra não são “dois calvinismos”. São duas maneiras de ordenar, em linguagem sistemática, a relação lógica entre: criação, queda, eleição, reprovação e redenção em Cristo.


1. O que está (e o que não está) em debate

1.1. O que não está em debate

Tanto infralapsarianos quanto supralapsarianos, dentro da ortodoxia reformada, afirmam que:

  • Deus decretou todas as coisas eternamente (sem aprender no tempo);
  • a queda não surpreendeu Deus;
  • a eleição é incondicional (não baseada em fé prevista);
  • a salvação é totalmente pela graça;
  • o ser humano é responsável por seu pecado;
  • Deus não é autor do pecado.

1.2. O que está em debate (a pergunta central)

A pergunta que separa as duas posições é:

Quando Deus “considera” (logicamente) a humanidade como caída ao eleger e reprovar?
  • Supra: Deus decreta eleger/reprovar antes de considerar a queda.
  • Infra: Deus decreta eleger alguns dentre uma humanidade já considerada caída.

Atenção: isso é ordem lógica, não “antes e depois no tempo”. Deus não toma decisões cronologicamente; nós é que, por necessidade humana, descrevemos dependências racionais entre decretos.


2. Infralapsarianismo (eleição considerada sobre a “massa caída”)

Infra significa “depois”; lapsus significa “queda”. No infralapsarianismo, Deus é descrito como elegendo “dentre” a humanidade já considerada caída. A eleição, portanto, aparece com linguagem mais diretamente redentiva: Deus escolhe pecadores para salvar.

2.1. Esquema em linguagem simples

  1. Deus decreta criar a humanidade
  2. Deus decreta permitir a queda
  3. Deus decreta eleger alguns dentre os caídos (e deixar outros em sua culpa)
  4. Deus decreta enviar Cristo para redimir os eleitos
  5. Deus decreta aplicar a salvação pelo Espírito

2.2. Intuição teológica

  • a humanidade é considerada como culpável e miserável;
  • a eleição é descrita como misericórdia sobre pecadores;
  • a reprovação costuma ser explicada como preterição + condenação por culpa.
ninguém é condenado sem culpa;
ninguém é salvo sem graça.

Por isso, muitos consideram o infra mais “pastoralmente intuitivo”: fica muito natural dizer que Deus salva quem não merece, e que os demais são julgados por sua própria culpa real.


3. Supralapsarianismo (eleição e reprovação consideradas “antes” da queda)

Supra significa “antes”. No supralapsarianismo, a eleição e a reprovação aparecem “mais acima” na ordem lógica, como parte do propósito de Deus de manifestar sua glória em misericórdia e justiça. A queda entra como meio/contexto do plano.

3.1. Esquema em linguagem simples

  1. Deus decreta manifestar sua glória (misericórdia e justiça)
  2. Deus decreta eleger alguns e reprovar outros
  3. Deus decreta criar essas pessoas
  4. Deus decreta permitir a queda
  5. Deus decreta redimir os eleitos em Cristo

3.2. Intuição teológica

  • a eleição não é descrita como “reação” à queda;
  • a queda é subordinada ao propósito do decreto;
  • há forte ênfase na soberania “no topo” do sistema.

O ponto sensível é pastoral: se exposto sem cuidado, o supralapsarianismo pode soar como se a queda fosse “instrumentalizada”. Por isso, supralapsarianos ortodoxos insistem fortemente em distinções como: decreto vs autoria do pecado, primeira causa vs causas secundárias, e responsabilidade voluntária do agente humano.


4. Comparação direta: ordem lógica, objeto do decreto e reprovação

4.1. A pergunta-guia

Quando Deus “considera” a humanidade como caída ao eleger/reprovar?

  • Supra: antes de considerar a queda
  • Infra: dentre uma humanidade já considerada caída

4.2. “Objeto” da eleição e da reprovação

  • Infra: o objeto é a massa caída (pecadores a serem salvos).
  • Supra: o objeto é a humanidade considerada como criável (pessoas destinadas a misericórdia e justiça; a queda entra como meio/contexto).

4.3. Reprovação: simetria vs assimetria

Aqui aparece uma diferença importante de “tom”:

  • Supra tende a falar com maior simetria: Deus decide dois destinos (misericórdia/justiça) e ordena criação/queda/redenção como execução do plano.
  • Infra tende a falar com maior assimetria: Deus escolhe salvar alguns; os demais são “deixados” em seu pecado e justamente condenados por sua culpa. Isso costuma soar mais “seguro” pastoralmente.

5. Dort e Westminster: consistência confessional (seção por seção)

Agora vem a parte mais importante para um texto realmente “de referência”: o que os principais documentos confessionais reformados dizem — e o que eles não dizem — sobre a ordem dos decretos.

Resumo honesto: nem Dort nem Westminster exigem que todo reformado “seja” infra ou supra. Mas ambos usam linguagem que, na prática, costuma ser mais confortável ao infra.

5.1. Cânones de Dort: onde a linguagem é “infra” (sem virar um dogma técnico)

O ponto clássico é que Dort descreve a eleição com referência explícita à humanidade caída. Isso aparece especialmente no Primeiro Cabeça de Doutrina (Eleição e Reprovação).

Notas acadêmicas: Dort artigo por artigo (primeira cabeça)

I.1 (culpa universal em Adão): estabelece “massa caída” e justiça de Deus em condenar todos.
I.6 (fé como dom concedido segundo decreto): enfatiza soberania eficaz.
I.7 (definição de eleição): descreve Deus escolhendo “do todo o gênero humano... caído... em pecado e destruição”.
I.15 (reprovação): linguagem típica de “deixar” e “passar por cima” (preterição) e então “condenar justamente”.
I.16 (consolo e cuidado pastoral): preocupação explícita em não ferir consciências e instruir com prudência.

Leitura confessional responsável: Dort é fortemente “redentivo” e “pastoral” na forma de falar da eleição, o que se encaixa naturalmente no infralapsarianismo, mas o documento não obriga uma tese escolástica de “ordem lógica” como artigo de fé.

Em linguagem leiga: Dort apresenta a doutrina de modo que o leitor entenda que Deus escolhe salvar pecadores culpáveis, e que ninguém é condenado “inocente”. Isso não é “anti-supra”, mas o texto é claramente confortável ao vocabulário infra.

5.2. Confissão de Fé de Westminster: “ordena tudo” e protege Deus de ser autor do pecado

Westminster é extremamente cuidadosa: afirma o decreto abrangente, mas ao mesmo tempo protege quatro coisas: (1) Deus não é autor do pecado; (2) a vontade humana não é violentada; (3) causas secundárias permanecem reais; (4) responsabilidade humana permanece.

Notas acadêmicas: WCF capítulo e seção por seção (núcleo do tema)

WCF 3.1: Deus ordena tudo o que acontece, mas “não é autor do pecado”; não violenta a vontade; estabelece causas secundárias.
WCF 3.3: “para manifestação de sua glória” alguns são predestinados à vida e outros preordenados à morte (linguagem que supras gostam de citar).
WCF 3.5: eleição “por amor e graça... sem previsão de fé/obras” (anti-arminiano).
WCF 3.6: descreve os eleitos como “caídos em Adão” e redimidos por Cristo (vocabulário confortável ao infra).
WCF 5.4: Deus ordena até atos pecaminosos “de tal maneira” que não é autor do pecado (trava anti-determinismo grosseiro).
WCF 5.2–5.3: causas secundárias e contingência real (compatibilismo confessional).
WCF 6: queda e corrupção; fornece o pano de fundo “massa caída”.
WCF 9: liberdade da vontade em quatro estados; rejeita liberdade libertária como norma soteriológica.

Leitura confessional responsável: Westminster permite infra e supra, mas a forma de falar dos eleitos “caídos em Adão” e redimidos por Cristo torna o uso público e catequético tipicamente infralapsariano.

Em linguagem leiga: Westminster diz claramente que Deus governa tudo e salva por graça, mas também diz, com igual clareza, que isso não elimina responsabilidade, nem transforma Deus em autor do pecado. A confissão não manda você “escolher” infra ou supra, mas ensina os limites do discurso.


6. Textos bíblicos frequentemente usados (e como são aplicados)

Um cuidado importante: as mesmas passagens aparecem dos dois lados. A diferença costuma ser de ênfase e de como o texto é usado para sustentar o “arranjo” do sistema.

6.1. Textos mais associados ao supralapsarianismo

  • Efésios 1:4–6,11 — “antes da fundação do mundo”; “segundo o conselho da sua vontade”.
    Leitura supra típica: a eleição é ancorada no propósito eterno e precede logicamente o cenário histórico.
  • Romanos 9:10–23 — oleiro; vasos de misericórdia e de ira; linguagem de finalidade (“para...”).
    Leitura supra típica: a teleologia sugere que a manifestação de glória ocupa lugar alto no esquema.
  • Provérbios 16:4 — tudo feito para certos fins; até o ímpio para o dia do mal.
    Leitura supra típica: reforça a teleologia abrangente.
  • Apocalipse 13:8 / 17:8 — “Livro da Vida” ligado à fundação do mundo (variações textuais/tradutórias).
    Uso supra típico: linguagem de conselho eterno.

6.2. Textos mais associados ao infralapsarianismo

  • Romanos 5:12–19 — queda real em Adão; justiça em Cristo.
    Leitura infra típica: o cenário bíblico é queda → necessidade de Redentor → misericórdia sobre perdidos.
  • Efésios 2:1–10 — “mortos em delitos”; vivificados pela graça.
    Leitura infra típica: linguagem pressupõe pessoas já em miséria real.
  • Lucas 19:10 e 1 Timóteo 1:15 — Cristo veio salvar pecadores.
    Uso infra típico: destaca o objeto da salvação como pecadores culpáveis.
  • 1 Pedro 2:8–10 — tropeçam; destinados; “povo de propriedade exclusiva”.
    Leitura infra típica: enfatiza culpa e misericórdia em contraste.

6.3. Textos usados por ambos (mínimos reformados)

  • Atos 2:23 — decreto e responsabilidade humana juntos
  • Gênesis 50:20 — intenção humana má; intenção divina boa
  • Isaías 46:9–10 — Deus cumpre todo o seu propósito
  • João 6:37–44 — eficácia do chamado
  • Romanos 8:28–30 — “cadeia dourada”

7. Impactos em debates: livre-arbítrio e teodiceia

7.1. Livre-arbítrio e responsabilidade humana

Tanto infra quanto supra operam dentro do quadro reformado clássico: compatibilismo. Isto é: o ser humano escolhe de modo voluntário e real, segundo seus desejos e inclinações, e ainda assim Deus permanece soberano e eficaz.

Diferença prática de comunicação:

  • Infra costuma ser mais “confortável” na linguagem pastoral, porque descreve eleição como misericórdia sobre culpados já considerados caídos. Ajuda a enfatizar: “Deus salva alguns; os outros são condenados por seus pecados”.
  • Supra exige mais cuidado, porque pode soar (aos ouvintes) como se a queda fosse um “meio necessário”. Por isso, supras ortodoxos insistem em: Deus não é autor do pecado; o homem peca voluntariamente; a culpa é do agente humano.

7.2. Teodiceia (o problema do mal)

Aqui a diferença de “tom” aparece com força:

  • Supra tende a responder de modo mais teleológico: o mal existe dentro de um plano maior para manifestação da glória de Deus (misericórdia e justiça).
    Risco: soar como se o mal fosse “necessário” ou como se Deus o causasse diretamente. Por isso, supras recorrem a distinções como decreto vs causação eficiente, vontade decretiva vs preceptiva, e concursus divino sem autoria do pecado.
  • Infra tende a responder de modo mais histórico-redentivo: Deus permite a queda e, sobre essa massa caída, manifesta misericórdia salvadora em Cristo, e justiça na condenação culpável.
    Força: fica mais intuitivo dizer: “Deus não condena inocentes; todos caíram; alguns recebem graça”.

8. Comparação com posições não reformadas (arminianismo e molinismo)

8.1. Arminianismo

Diferença nuclear: o arminianismo, em suas formas mais comuns, entende a eleição como condicionada à fé prevista (ou ao uso da graça preveniente), e tende a preservar alguma forma de liberdade libertária.

  • eleição condicionada à resposta humana prevista;
  • graça resistível;
  • expiação frequentemente concebida como universal do mesmo modo para todos;
  • ênfase em liberdade libertária (em maior ou menor grau).

Como o debate infra/supra entra aqui: para muitos arminianos, infra e supra são “disputas internas”, porque ambas as posições ainda afirmam eleição incondicional e decreto abrangente.

8.2. Molinismo (conhecimento médio)

O molinismo tenta conciliar providência soberana e liberdade libertária por meio do “conhecimento médio”: Deus conheceria contrafactuais do tipo “o que cada pessoa faria livremente” em quaisquer circunstâncias possíveis.

Em linhas gerais:

  • Deus escolhe criar um mundo no qual, dadas certas circunstâncias, pessoas fariam escolhas X ou Y;
  • Deus governa a história selecionando o “mundo” que realiza seus propósitos sem determinar escolhas;
  • preserva liberdade libertária como elemento central.

Por que reformados geralmente objetam:

  • base metafísica contestada: há “verdades contrafactuais” antes do decreto?
  • ultimidade do decreto: parece que algo “externo” condiciona o plano divino;
  • suficiência bíblica: Escritura descreve decreto e eficácia divina sem precisar dessa categoria intermediária.

Onde infra/supra entra nisso: se você já está no quadro reformado, infra e supra são dois modos de organizar o mesmo tipo de decreto soberano. O molinismo muda a mecânica: ele tenta preservar liberdade libertária; o reformado é compatibilista.


9. Conclusão operacional

  • Supralapsarianismo: maximiza a leitura teleológica e sistemática do decreto; exige precisão para não sugerir autoria do mal.
  • Infralapsarianismo: tende a ser mais natural biblicamente e pastoralmente; destaca misericórdia sobre a massa caída e condenação por culpa.

Por fim, um ponto confessional essencial: a tradição reformada clássica tende a ensinar a doutrina com linguagem “infra” em catequese e púlpito, sem necessariamente excluir “supra” como discussão teológica possível, desde que se preservem com rigor: Deus não é autor do pecado e o homem peca voluntariamente e é culpado.

“Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus” (Romanos 11:33)

10. Perguntas frequentes (FAQ)

“Deus criou algumas pessoas apenas para condená-las?”

Essa é uma objeção comum — e precisa ser respondida com muito cuidado. A teologia reformada clássica não afirma que Deus cria pessoas inocentes com o objetivo direto de condená-las arbitrariamente.

Mesmo no supralapsarianismo, a condenação nunca ocorre sem culpa real. Todos os que são condenados o são por seus próprios pecados. A diferença entre infra e supra não está em se há culpa, mas em quando a humanidade é considerada como caída na ordem lógica do decreto.

Por isso, a tradição reformada prefere dizer que Deus:

  • elege alguns para misericórdia;
  • e deixa outros em sua culpa justa (preterição);
  • sem jamais condenar alguém que não mereça condenação.

“Isso não torna a queda ‘necessária’ ou ‘forçada’?”

A resposta reformada clássica é: não. Necessário no plano divino não significa forçado na experiência humana.

A Escritura e as confissões afirmam simultaneamente que:

  • Deus decreta tudo o que acontece;
  • a queda ocorreu por escolha voluntária de Adão;
  • a responsabilidade moral pertence ao agente humano;
  • Deus não é autor do pecado.

Esse conjunto é sustentado por distinções clássicas: decreto vs causação eficiente, vontade decretiva vs vontade preceptiva, e causas primárias vs secundárias.

O infralapsarianismo costuma minimizar esse ruído, porque descreve a eleição como misericórdia sobre uma condição já assumidamente caída. O supralapsarianismo pode sustentar a mesma conclusão, mas exige maior rigor conceitual para evitar mal-entendidos.

“Se Deus já decretou tudo, por que evangelizar?”

Essa pergunta aparece tanto em contextos leigos quanto acadêmicos, e a resposta reformada é direta: Deus decreta não apenas os fins, mas também os meios.

A eleição não elimina a evangelização; ela a fundamenta. Porque Deus tem eleitos, a proclamação do evangelho não é em vão.

Do ponto de vista humano:

  • o evangelho é oferecido sinceramente a todos;
  • o chamado externo é real;
  • a responsabilidade de crer é genuína;
  • ninguém sabe quem são os eleitos.

Do ponto de vista divino:

  • o Espírito aplica eficazmente a salvação aos eleitos;
  • a Palavra é o instrumento ordenado para isso;
  • o sucesso da missão não depende da habilidade humana.

Por isso, historicamente, a teologia reformada produziu forte zelo missionário, não fatalismo.


11. Glossário essencial (termos-chave)

Decreto
O plano eterno e soberano de Deus, pelo qual Ele ordena tudo o que acontece, sem aprender no tempo e sem ser autor do pecado.
Preterição
Aspecto negativo da reprovação: Deus decide não conceder graça salvadora a alguns, deixando-os em sua culpa real, pela qual são justamente condenados. Não significa causar pecado, mas não conceder misericórdia.
Causas secundárias
Meios reais e responsáveis pelos quais os eventos ocorrem na história (vontade humana, decisões, circunstâncias), ordenados por Deus sem perder sua realidade própria.
Compatibilismo
Visão segundo a qual a soberania absoluta de Deus é compatível com escolhas humanas voluntárias e responsáveis. A liberdade não é definida como indeterminação absoluta, mas como agir conforme a própria natureza e desejos.