segunda-feira, 2 de maio de 2016

O BATISMO INFANTIL: Objeções e Respostas (por João Calvino) - parte 01 de 06

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Extraído do 3º volume das "Institutas da Religião Cristã", edição especial para estudo e pesquisa com notas de Hermisten Maia Pereira da Costa (Editora Cultura Cristã).


Nota: A intenção deste artigo é demonstrar de forma documental o que o reformador João Calvino defendeu com relação a esse tema, e que em tese é o que a teologia reformada afirma. Sendo assim, não deve ser entendido como um ataque direto a qualquer linha interpretativa distinta, nem como uma afirmação de "não-comunhão" com irmãos que negam a biblicidade da prática do batismo infantil (até porque fui batista por muitos anos, e tenho muitos dessa denominação como irmãos genuínos, e não como hereges obstinados).
É importante também ressaltar que Calvino escreveu em tom de resposta, e não como um ataque condenatório sem motivos. E essa postagem, neste blog, pode ser entendida da mesma forma.
Lembrando ainda que o tema não é dos mais evidentes nas Escrituras, e o amplo conhecimento sobre ele não é requisito essencial para a salvação.


Não é acréscimo à Palavra de Deus; nela se baseia

Alguns espíritos mal-intencionados se levantam contra o nosso hábito de batizar crianças, como se essa prática não tivesse sido instituída por Deus, mas se tratasse de algo inventado pelos homens recentemente, ou ao menos pouco tempo depois dos apóstolos. Em face disso, achamos que, por dever de ofício, é preciso confirmar e fortalecer nesse ponto as consciências fracas e refutar as falsas objeções dos enganosos oponentes, com as quais eles poderiam perverter a verdade de Deus no coração de pessoas simples, não suficientemente preparadas para contestar suas cavilações sutis e hipócritas.

Porque em geral eles usam um argumento à primeira vista muito forte a seu favor, alegando que só desejam que a Palavra de Deus seja guardada e mantida em sua inteireza, sem nada lhe acrescentar nem subtrair. E acusam aqueles que tomaram a iniciativa de, segundo os nossos opositores, inventar a prática de batizar crianças e a acrescentaram ao que dispõe a Escritura, sem que para isso contassem com algum mandamento. Concederíamos que esse argumento seria mais que suficiente, se eles pudessem provar o seu intento – de que o Batismo infantil é fruto de invenção humana, e não uma ordenança de Deus. Mas quando, ao contrário, mostrarmos claramente que são eles que com falsidade e erro nos pressionam com a calúnia de chamar de tradição humana esta instituição muito bem alicerçada na Palavra de Deus, que lhes restará, senão que esse pretexto que em vão alegam vire fumaça?

A regra da fé

Pois aqui devemos lembrar-nos da regra a nós ditada pelo apóstolo Paulo, pela qual se pode entender bem a Escritura. Por essa regra, na exposição da Escritura sempre devemos fazer esse trabalho “segundo a medida da fé”.(Romanos 12.3) É como se nos fosse ordenado que tenhamos os olhos postos neste alvo: Reportar tudo o que a Escritura nos ensina à doutrina da fé, e desta, como a fonte verdadeira, deduzir a explicação de toda e qualquer doutrina espiritual. Uma vez tendo este fundamento (que para os cristãos deve ser perpétuo e geral, aplicável a toda a Palavra de Deus), nos será fácil reconhecer que o Batismo infantil cumpre a vontade do Senhor e é de instituição divina. Por outro lado, teremos facilidade em desfazer e resolver todas as dificuldades nas quais alguns estão envolvidos por não observarem esta regra tão necessária.

O que mais importa é a realidade interior e espiritual, não os atos externos. Agora, passando a tratar especificamente do nosso presente propósito, os crentes devem ter como algo resolvido o seguinte: Em que consiste a correta consideração dos sinais e símbolos ou sacramentos que o Senhor deixou e dos quais incumbiu a Sua igreja? Não consiste apenas nas exterioridades ou nas cerimônias externas, mas depende principalmente das promessas e dos mistérios espirituais que o Senhor quis representar com essas cerimônias.

Por isso mesmo, saber o que é o Batismo e qual a sua utilidade não é questão de fixar toda a atenção na água e nos atos externos, mas é necessário elevar o pensamento às promessas que Deus no Batismo nos faz e à realidade interior e espiritual que ele representa. Se tivermos isso, teremos a substância e a verdade do Batismo, decorrendo daí que viremos a compreender o fim para o qual esta aspersão de água que no Batismo se faz, e para que nos serve. Por outro lado, desprezando e deixando de lado estas coisas, se fixarmos o nosso espírito única e totalmente na observância exterior, jamais compreenderemos a eficácia e a importância do Batismo, como tampouco entenderemos o que significa esta água, nem a sua utilidade. Não nos demoramos muito neste assunto, visto que é exposto tantas vezes e com tanta clareza na Escritura que não deveria ficar duvidoso ou obscuro para os cristãos.

O que ainda nos resta é averiguar, nas promessas feitas no Batismo, qual é a sua substância.

Substância das promessas que nos são feitas no Batismo

A Escritura nos ensina que a remissão e purificação dos nossos pecados, bênção que obtemos graças à efusão do sangue de Jesus Cristo, nos é representada primeiramente, e, logo após, a mortificação da nossa carne, que obtemos participando da Sua morte, para, semelhantemente, ressuscitarmos para uma nova vida, a saber, para uma vida de inocência, santidade e pureza. Com isso, entendemos logo de início que o sinal visível e material é tão-somente uma representação de coisas mais altas e mais excelentes, para cujo conhecimento é preciso recorrer à Palavra de Deus, na qual está toda a virtude e eficácia do sinal. Pois bem, por essas palavras vemos que as coisas simbolizadas e representadas são a purificação da nossa carne, para sermos feitos participantes da regeneração espiritual, a qual deve estar presente em todos os filhos de Deus.

Finalmente, vemos que todas estas coisas são efetuadas em Jesus Cristo, sendo que Ele é o fundamento.

Sumário desta parte

Eis aqui, em suma, a declaração sobre o Batismo à qual se pode reduzir e referir tudo o que a respeito diz a Escritura, exceto um ponto que ainda não foi tocado, qual seja, que ele nos serve também de marca por meio da qual confessamos diante dos homens o Senhor como o nosso Deus, e somos admitidos ao Seu povo. 

Relação entre a Circuncisão e o Batismo

Tendo em vista que, antes da instituição do Batismo, o povo de Deus tinha em lugar dele a Circuncisão, vigente sob o Antigo Testamento, devemos aqui considerar estes dois sinais ou símbolos, para podermos entender sua semelhança e sua diferença, e ver o que podemos deduzir de cada um deles.

Quando o Senhor ordenou a Circuncisão a Abraão (Gênesis 17.7-11), primeiro lhe fez a promessa de que seria ser o seu Deus e o Deus da sua descendência, declarando-se todo-poderoso e revelando que tem em Suas mãos todas as coisas e que nele estão a plenitude e a fonte de todos os bens. Essas palavras incluem a promessa da vida eterna, como o declara o Senhor Jesus Cristo, ao formular um argumento extraído do fato de que Seu Pai é chamado Deus de Abraão, para convencer os saduceus da imortalidade e ressurreição dos crentes. Porque “Ele não é Deus de mortos e sim de vivos”. (Mateus 22.32)

Por isso mesmo o apóstolo Paulo, no capítulo dois de Efésios (Efésios 2.12), mostrando aos seus destinatários de que tremenda desgraça Deus os havia tirado, disso conclui que, não tendo eles recebido a Circuncisão, estavam “sem Cristo, separados da comunidade de Israel, [eram] estranhos às alianças da promessa, não tendo esperança e [estando] sem Deus no mundo”, visto que a Circuncisão testificava todas essas bênçãos. Ora, o primeiro passo que devemos dar para aproximar-nos de Deus e para entrarmos na vida eterna é a remissão dos nossos pecados. Disso decorre que esta promessa corresponde à do Batismo,que testifica a nossa purificação e ablução.

Depois o Senhor declara a Abraão a Sua vontade, mostrando-lhe que deve andar diante dele com integridade e inocência, o que outra coisa não é senão a mortificação para ressuscitar para uma nova vida. E, para que não houvesse nenhuma dúvida de que a Circuncisão é sinal e figura da mortificação, Moisés a expõe mais claramente no capítulo dez de Deuteronômio [versículo 16], onde exorta o povo de Israel a circuncidar o seu coração, oferecendo-o assim ao Senhor, uma vez que é o povo escolhido por Ele dentre todas as nações da terra.

Assim como o Senhor, quando acolhe a descendência de Abraão como Seu povo, ordena que se circuncide, assim também Moisés declara que “o coração” de Israel e dos seus descendentes será circuncidado (Deuteronômio 30.6), como querendo demonstrar qual a verdade da Circuncisão carnal. Além disso, para que ninguém sequer alimentasse a esperança de que poderia realizar esta mortificação por sua própria capacidade, Moisés ensina que é obra da graça de Deus em nós.

Todas estas coisas são repetidas tantas vezes nos Profetas que se dispensa mais ampla discussão a respeito.

Conclusão do presente argumento

Do que acima foi dito concluímos que a Circuncisão continha para os pais, ou seja, para os antepassados do povo de Deus, a mesma promessa que o Batismo contém, significando e simbolizando a remissão dos seus pecados e a mortificação da sua carne, para viverem para a justiça. E mais: Como dissemos que Cristo é o cumprimento de todas estas coisas, como também é o fundamento do Batismo, igualmente o é da Circuncisão. Porque Ele foi prometido a Abraão, e nele foi prometida bênção a todas as famílias da terra, como se o Senhor dissesse que toda a terra, estando sob maldição, receberia bênção por Seu intermédio. E lhes é acrescentado o sinal da Circuncisão para selar e confirmar dita promessa. 

Sumário das semelhanças e da diferença entre a Circuncisão e o Batismo

Nesta altura fica fácil julgar e discernir em que se harmonizam e são semelhantes e em que diferem estes dois sinais e símbolos, a Circuncisão e o Batismo:

A promessa que dissemos que constitui a virtude e eficácia dos sacramentos é uma e a mesma em ambos. E a promessa é da misericórdia de Deus, da remissão dos pecados e da vida eterna.

A realidade simbolizada ou representada é sempre a mesma, qual seja, a nossa purificação e mortificação. 

A causa e fundamento destas coisas, que é Cristo, é o mesmo tanto na Circuncisão como no Batismo; com base nele elas são confirmadas e se cumprem.

Segue-se que não há diferença alguma, quanto ao mistério interior, no qual reside toda a substância dos sacramentos, como já dissemos. Toda a diversidade que se encontra é quanto ao cerimonial externo, que é a parte menos importante dos sacramentos, pois que a consideração principal depende da Palavra e da realidade significada e representada. Portanto, podemos concluir que tudo o que pertence à circuncisão pertence igualmente ao Batismo, exceto a cerimônia externa e visível.

Regra paulina de interpretação da Escritura

E a essa dedução nos conduz a regra apostólica que seguimos: que toda a Escritura se deve medir segundo a proporção e a analogia da fé, a qual sempre tem em vista as promessas. E, de fato, neste ponto quase que se pode tocar a verdade com as mãos. Porque, assim como a Circuncisão foi um sinal ou uma marca para os judeus, pela qual reconheciam que Deus os recebia como Seu povo e eles O confessavam como seu Deus, e dessa maneira servia como a primeira entrada externa na igreja de Deus, assim também pelo Batismo somos primeiramente recebidos na igreja do Senhor, para sermos reconhecidos como Seu povo, e nos declaramos desejosos de tê-lo como o nosso Deus. Por aí se vê claramente que o Batismo substituiu a Circuncisão.

À semelhança da Circuncisão, as crianças devem ser batizadas 

Agora, se alguém perguntar se o Batismo deve ser ministrado às crianças, supondo que estão incluídas na ordenação de Deus, quem será tão desprovido de bom senso que queira restringir-se a resolver o caso só levando em conta a água e a observância visível, sem considerar o mistério espiritual? Porque, se o tivermos em vista, não teremos dúvida alguma de que as crianças têm direito ao Batismo.

Quando antigamente o Senhor ordenou que se ministrasse a Circuncisão às crianças, declarou-as explicitamente participantes de tudo o que nela e por ela é representado. Se não fosse assim, com razão se poderia dizer que essa instituição não passa de um engano e uma mentira, e até de uma tremenda farsa. O que não se pode pensar nem tolerar entre os crentes.

O Senhor disse expressamente que a Circuncisão ministrada à criança seria para confirmar a aliança que acima expusemos. Porque, como é certo que a aliança permanece sempre a mesma, é mais que certo que os filhos dos cristãos não são menos participantes dela do que o foram os filhos dos judeus no Antigo Testamento. Ora, se as crianças participam da realidade representada ou simbolizada, por que não deverão receber também o sacramento, que é seu símbolo ou sua representação?

Cerrada argumentação pró pedobatismo

Se formos estabelecer diferença entre o sinal visível e a Palavra, qual deve ser considerado mais importante e mais excelente? É claro e patente que, como o sinal serve à Palavra, esta lhe é superior. E, visto que a Palavra é comunicada às crianças, por que privá-las do sinal, que depende da Palavra? Se outra razão não houvesse, esta seria suficiente para fechar a boca dos que defendem opinião contrária.

Quanto à objeção que alega que havia um dia marcado para a Circuncisão (Gênesis 17.12; 21.4), esse argumento não tem razão de ser. É certo que o Senhor não nos impôs determinados dias, como fez com os judeus; nesse aspecto Ele nos deixou em liberdade.

Todavia, Ele declarou que as crianças sejam recebidas solenemente em Sua aliança. Vamos querer mais que isso?




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